domingo, 9 de outubro de 2011

Sobre os professores e a indiferença de boa parte da sociedade brasileira
Lucia Elena Pereira Franco Brito*

Depois de uma greve histórica de 112 dias, voltamos, no dia 29 de setembro, para nossa rotina de trabalho na sala de aula. Na condição de professora de História da Rede Estadual de Ensino de Minas Gerais há 19 anos, posso testemunhar o descaso com que os professores vêm sendo tratados nesse país. Contudo, nem em sonho poderia imaginar tudo que presencie na tensa, intensa e extensa paralisação de 2011.Durante muitos anos, nós, professores mineiros – e de outros estados também –, trabalhamos calados e cabisbaixos, engolindo a seco humilhações de todo tipo. Víamos o país passar por certo crescimento, o salário mínimo reajustado ano após ano – e mudando, realmente, de patamar – e seguíamos mortificados com os mesmos contracheques. Tornou-se comum a existência de alunos do noturno, já trabalhadores, ainda sem concluir o ensino médio e recebendo salários bem maiores que os dos professores – profissionais, em grande parte, graduados e pós-graduados.A sala dos professores converteu-se em um espaço de descrença e lamentações. O adoecimento, responsável pelo aumento dos afastamentos por licença saúde, além de crescer nos últimos anos, diversificou-se. Ao lado dos tradicionais problemas com a voz, coluna e braço, passaram a ser frequentes os quadros de depressão, ansiedade, transtorno do pânico e outros sinais do adoecimento psíquico do professorado em geral, resultante de péssimas condições de trabalho, desvalorização e perda da auto-estima, para citar apenas algumas causas.Mesmo diante desse caos, foram escassas as reações por um longo período e, quando ocorriam, soavam estranhas, porque parece que boa parte da sociedade brasileira entende que aos professores compete o sacerdócio, a vocação e o trabalho por amor. Além, evidentemente, da dedicação irrestrita e incansável que trará melhores indicadores à educação no Brasil. Caso isso não ocorra, esses mesmos profissionais, “heróis” em algumas situações, são metamorfoseados imediatamente em “vilões” – os culpados por todo fracasso que possa envolver o mundo escolar. Por isso, nada mais natural que sejam punidos com mais trabalho, mais responsabilidade (agora somos “educadores”, a família e a sociedade lavam as mãos e nós temos que, além de ensinar, educar), com sobrecarga de funções e obrigações e com baixos salários. Quando reclamávamos, a resposta sempre vinha pronta: o professor é mal qualificado, por isso ganha mal. Se estudasse mais, receberia mais.Eis que em 2011, não somente em Minas Gerais, os professores deram uma aula, de conteúdo diversificado, e de graça – como sempre – para toda a sociedade brasileira. Provamos que não somos seres estranhamente etéreos. Somos de carne e osso, sentimos fome e sede (fazemos greve de fome!), sentimos frio (o que ficou cientificamente provado, quando ligaram o ar condicionado da Assembleia Legislativa de Minas Gerais para torturar os professores que se encontravam acorrentados, em protesto, naquela casa) e, pasmem!, temos sangue – isso mesmo, sangramos quando apanhamos, mesmo quando isso ocorre diante das câmeras de televisão. Posso imaginar o susto de vários brasileiros quando viram as imagens mostradas pelo Jornal Nacional dos professores do Ceará em greve que apanharam até sangrar: “Gente, eles têm sangue!”. Estranhamente, agressões parecidas ocorreram em Minas, numa praça chamada “da Liberdade”, mas a Globo não captou. Que pena!Mostramos que temos um baita conhecimento de geografia. Deslocamo-nos todas as semanas para Belo Horizonte, partindo de diferentes regiões deste estado gigantesco, para debatermos a continuidade ou não do movimento e as estratégias traçadas para fazer escutar aqueles que não queriam nem sequer ouvir. Conseguimos até rastrear a agenda das autoridades políticas, a ponto de provocarmos repentinas mudanças de planos. Como se não bastasse, descobrimos outra forma de dominar o espaço – navegamos pelas redes sociais e nos mantivemos unidos, apesar das pressões, ameaças, chantagens, perseguições, exonerações, contratações de fura-greves, com o falso interesse de não prejudicar os alunos – como se professores e alunos não fizessem parte do mesmo processo e sempre que se desvaloriza um, prejudica-se o outro dessa relação.Na matemática, então, demos um show. Quando o governo tentou nos seduzir com o subsídio, provamos que o piso – agregadas a ele todas as nossas vantagens adquiridas por tempo de serviço e escolaridade, conforme o STF, inclusive, considerou – resultava numa soma muito mais condizente com um salário digno. Justamente nós fizemos essa conta, de quem se esperava que se pagasse água, luz, gás, comida e outras banalidades com amor!Sem me alongar, porque as lições foram inumeráveis, mostramos que temos voz e que queremos gritar. Essa voz começou a ser timidamente emitida na greve de 2010, quando fizemos um pequeno aquecimento que serviu para revelar a habilidade dos governantes para não cumprir acordos, mas revelou também a força que tem uma categoria quando acorda para sua própria importância. Esse movimento ainda não terminou. Depois do aquecimento, veio no máximo um ensaio geral. O grande espetáculo ainda está por vir. Agora que estamos reconstruindo nossa identidade – tantos anos corroída pelas políticas públicas que cuidadosamente alienaram os docentes em nome de um nefasto pensamento hegemônico –; agora que estamos fazendo as pazes com o pensar crítico, com a coragem de cobrar e de buscar o que é nosso de direito (Piso Salarial Profissional Nacional, embora pífio, é lei), não vamos desistir de jeito nenhum!Não posso falar por todos os professores, mas posso falar por mim e talvez meu pensamento se aproxime de outros colegas de profissão. Embora não trabalhe “por amor”, amo o que faço. Mas não vou fazê-lo à custa da destruição de minha saúde, de meus sonhos e em detrimento de meus direitos. Vou fazê-lo, com amor e competência, exigindo sempre ser respeitada e valorizada na proporção direta do meu esforço, dedicação, capacidade, tempo de serviço e escolaridade. Docência não é sacerdócio, é profissão da maior importância exercida por gente de carne e osso; pessoas que possuem necessidades, desejos, deveres, mas também direitos. Quanto esse país não tem perdido por não reconhecer tamanha obviedade! Que a sociedade brasileira acorde de sua conveniente e sonolenta indiferença e pague o que nos deve. E tenho dito!
Lucia Elena Pereira Franco Brito é professora de História da rede pública estadual. Texto publicado no Jornal Pontal, da cidade de Frutal, em outubro de 2011

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